segunda-feira, 18 de junho de 2007

Entrevista com Raimundo Carrero - Por Rivalter Pereira

Raimundo Carrero, ex-assessor de Gilberto Freyre, é hoje o maior ficcionista do Recife. Estreou com uma ótima novela, sendo a sua uma das melhores estréias da literatura brasileira, intitulada A História de Bernarda Soledade: A Tigre do Sertão. Uma novela gótica em pleno sertão pernambucano, onde é narrado o esboço de uma grande personagem feminina: Bernarda Soledade, que é uma espécie de precursora de Maria Moura, da cearense Rachel de Queiroz. Obra que contou com o apoio de Hermilo Borba Filho, prefácio de Ariano Suassuna e arrancou elogios de um mestre da poesia brasileira, Carlos Drummond de Andrade. Há um romance agrário seu que é um dos melhores do gênero: Viagem ao Ventre da Baleia. Não há como ler os diálogos religiosos deste livro e não sentir inveja do criador que os concebeu. A cena da morte do pai de Jonas e os momentos em que o fazendeiro narra a sua própria história são trechos que não me saem da memória. É um livro que realmente impressionou-me, mas, apesar de não ter gostado de vários trechos em que é reproduzido o passado de Jonas, considero-o superior ao São Bernardo, de Graciliano Ramos. Há mais prazer, isso é inegável, na leitura de São Bernardo. Porém, há maior compensação artística e filosófica ao terminarmos a leitura deste Viagem ao Ventre da Baleia. Pode parecer implicância com o escritor alagoano, afinal tão mais conhecido e divulgado dentro e fora do país, do que Raimundo Carrero, mas, em geral, ao comparar seus livros com os deste, fico sempre com o pernambucano. Outro caso, por exemplo, é o de minha escolha do livro Sombra Severa em lugar do famoso Vidas Secas. De fato, Sombra Severa parece-me um dos trabalhos mais perfeitos da literatura brasileira, com sua precisão, objetividade, suas reflexões e principalmente seu denso poder poético. É uma obra cuja leitura e releitura, me satisfez mais do que a leitura do Vidas Secas. Ele é autor ainda de um dos mais competentes romances modernos, Maçã Agreste, livro que em termos de linguagem poética, densidade e estrutura, supera A Grande Arte, de Rubem Fonseca. Paciente, bem urdido, muitíssimo inspirado e complexo, é o melhor romance escrito sobre o Recife que conheço. No jogo que faz de tempo narrativo, onde mostra ora o interior do estado, ora a capital, expõe, a exemplo do pintor espanhol Pablo Picasso, um quadro de dor, de horror, de opressão, angústia e frustração. É um Recife sórdido, atrasado, o que aparece nas páginas desta que é a sua grande obra-prima, o livro que mais o imortaliza na galeria dos maiores autores nacionais. Mais recentemente, recebeu um dos mais tradicionais prêmios literários do país, o Jabuti, na categoria de contos, tendo concorrido com nomes como Rubem Fonseca, Ignácio Loyola Brandão e Nélida Piñon. O livro vitorioso, As Sombrias Ruínas da Alma, como conjunto, não chega a superar a força e a qualificação de Maçã Agreste mas, se tomarmos isoladamente alguns contos deste livro, encontraremos alguns dos maiores momentos de toda a sua carreira, especialmente na série de contos que formam a parte das Iluminações. Um dado curioso: esse é um livro de contos dividido em partes. E além de uma mudança clara na sua escrita, passando a escrever numa linguagem mais ágil e leve, houve o que considero a mudança principal, uma guinada no tocante aos temas adotados por ele e o destino de seus personagens. Neste As Sombrias Ruínas da Alma continuamos nos deparando com os mesmos personagens derrotados presentes em seus livros anteriores, como sádicos, insanos e assassinos. Contudo, por obra e graça da presença destas Iluminações, deu-se o milagre que fez surgir um outro Raimundo Carrero: não mais um escritor apenas angustiado que acompanha os principais escritores pós-modernos, mais também um artista e ser humano ampliado em sua dimensão metafísica. Estes contos, As Iluminações, obras-primas de poucas páginas, possuem uma atmosfera de sonho, uns personagens e uma mensagem singela e positivista, que o aproxima de Guimarães Rosa. Nunca antes havia experimentado um tão grande prazer em ler um livro de Raimundo Carrero. Nem mesmo com Sombra Severa e Maçã Agreste, ou com o clássico da literatura marginal que escreveu , Somos Pedras Que se Consomem, porque estes livros oprimem, assustam. Quanto às Iluminações... Elas nos redirecionam ao caminho que conduz à elevação espiritual. Santa escrita, a desse ficcionista, que com mais de sessenta anos soube refazer-se, renovar-se.
Início da entrevista:
1 – A afirmação de Juan Rulfo de que Guimarães Rosa é o maior escritos das três Américas nos envaidece. Entretanto, olhando com distanciamento, Guimarães Rosa é mesmo maior que Faulkner?

Em geral Rivalter, tenho muitas dificuldades para apontar o melhor ou os melhores. Ambos são grandiosos, sendo que Guimarãe chega até nós com mais familiaridade, pelos temas, pela linguagem, pela visão,vamos dizer, mais brasileira dos problemas universais. No entano, o mundo tortuoso de Faulkner me encanta muito. Seus personagens, seus negros, sua reflexão do sul dos Estados Unidos é magnifíca, e pelo menos, a mim, deixa atormentado. Sinto que quando leio Faulkner saio mais inquieto e, no entanto, mais humano.


2 – Cite, por ordem de importância, na sua opinião, as cinco obras de ficção mais importantes da segunda metade do século XX.

"A Pedra do Reino", de Ariano Suassuna; "Viva o Povo Brasileiro", de João Ubaldo Ribeiro; "Dois Irmãos", de Milton Hauton; "Cem Anos de Solidão", de Gabriel Garcia Marques; e "Conversa na Catedral", de Mario Vargas Llosa.

3 – Certa vez, num telefonema, perguntei-lhe se o senhor havia escrito algo de maior envergadura do que Maçã Agreste, e o senhor disse que não. Outra ocasião citou Sinfonia para Vagabundos como o seu melhor. Afinal, qual a sua maior criação?

Quando penso em "Maçã Agreste" percebo que escrevi um romance muito forte, de uma estrutura elaborada. E isso me deixa muito feliz. Mas "Sinfonia para Vagabundos" é aquele livro que representa melhor o meu estado de espírito, multifacetada, confuso, caótico. Tenho uma grande paixão pelos dois. Assim como acho que "O amor não tem bons sentimentos", que chega agora às livrarias, é o romance mais completo, pelo avanço das técnicas, pela construção literária, pela paixão do personagem Matheus.


4 – Quando pensa na ficção de Rubem Fonseca o que lhe vem à cabeça prioritariamente: violência, sexo ou sofisticação técnica?

Essencialmente sofisticação técnica. Todo mundo sabe que sou apaixonado pela técnica. Mas é claro que ela não existiria sem uma galeria de personagens atormentadores e fortes. Rubem Fonseca tem um universo literária fascinante.


5 – Se vier, um ano destes, um Nobel para o Brasil, quem deve levá-lo: Rubem Fonseca, João Ubaldo Ribeiro ou Dalton Trevisan?

Ariano Suassuna.

quarta-feira, 13 de junho de 2007

Notas Sobre Thomas Pynchon (O monstro sagrado) Rivalter Pereira.

V é a inicial do nome da mulher que o pai de Stencil amou um dia, V é uma mitologia, V é uma brincadeira de seu autor, V é um enigma proposto ousadamente por Thomas Pynchon, em sua estréia literária, que se deu através do livro V., um dos mais herméticos da literatura americana. O título do livro é uma provocação. E sua leitura oferece dificuldades que fazem, por momentos, que desejemos abandoná-lo antes de sua conclusão. Isso porque V. não é livro para qualquer tipo de leitor. Com esta estréia, acontecida em 1963, Thomas Pynchon deixa explícita sua disposição de polemizar com o público e com a crítica. Todos ficam perplexos com a leitura dos capítulos do livro, posto que mais se parecem com contos, de tão distantes que estão, às vezes, do enredo dos dois personagens centrais, Herbert Stencil e Benny Profane. Mas Thomas Pynchon é mestre na arte de manipular uma narrativa caótica e reconstituir o mapa dos vários enredos e mostrar que por trás do caos pode haver uma ordem. Vários críticos têm sido unânimes em afirmar que ele, através de suas magníficas ficções, retrata um mundo em decomposição, vazio e triste, que não pode contar com a ajuda de Deus porque, para Thomas Pynchon, simplesmente, não existe Deus. Não estão de todo errados. Talvez, de fato, ele não acredite em Deus, mas, uma leitura mais apurada de seus livros, mostrará que Pynchon sofre de ansiedade com relação a Deus. Vejamos esse trecho de V.: Oh, Deus está aqui, você sabe, nos tapetes lilás de sala a cada primavera, no laranja-sangue dos bosques, nas doces vagens de minha alfarroubeira, o pão de São João desta querida ilha. Os dedos D`Ele varrem as ravinas; seu sopro mantêm as nuvens de chuva longe de nós; sua voz um dia guiou o náufrago São Paulo para abençoar nossa Malta. Não quero com esse exemplo (embora haja vários como este em seus livros) favorecer tese contrária e fazer do anárquico e cínico Thomas Pynchon um autor religioso. Eu não chegaria a tanto. Acredito apenas que deve haver mais equilíbrio quando da análise de um autor tão ambíguo.
Grandeloquênte, rigoroso, denso, poético, extremamente belo, sabiamente cômico, inesgotavelmente criativo, incrivelmente hermético, misto de ácida criticidade e sutil sentimentalismo, monumental painel da Europa do final da segunda grande guerra, metafórica fábula de nosso tempo, obra misteriosamente barroca e pós-moderna, O Arco-íris da Gravidade, do americano Thomas Pynchon é, sobretudo, e sem medo de errar, dessas criações literárias a que denominamos de obra-prima. O crítico paulista Diogo Mainardi não lhe poupa palavras, definindo-o como o romance mais obscuro, complexo e engenhoso de todos os tempos. Trata-se, de fato, de uma das experiências mais ousadas da literatura desde que James Joyce chocou o mundo com o seu Ulisses. Não é missão fácil resumir-lhe o enredo, dada a vastidão de personagens e as várias tramas e subtramas que o permeiam. E o que eles vivem são as situações mais delirantes, nada fáceis de serem enquadradas. Como consolo, existe um personagem central, o militar Tyrone Slothrop, um tipo satírico, um tipo que envolve-se em surrealísticas confusões na Europa devastada pela guerra. Entretanto, não faltam momentos empolgantes, a despeito da complexidade verbal, da confusão das vozes narrativas, com encontros e desencontros amorosos, vinganças, cenas hilariantes etc. Os gêneros também fundem-se nesta obra singular: comicidade e dramaticidade, longas descrições barrocas e situações pós-modernas, poesia, conto, novela, todos integrados numa prosa riquíssima, contribuindo para uma fabulação genial. Profeta do caos, digamos que com O Arco-íris da gravidade Thomas Pynchon extremiza seu discurso e escreve o que se pode chamar de O Segundo Livro do Apocalipse. Não necessariamente como a obra de um ateísta, mas possivelmente a realização de uma espécie de crente desesperado. Este grande romance é o que podemos chamar de uma autêntica Bíblia do Caos. E, muito embora, ele seja um torpedo entremeado de caos e ordem, oscilando a todo momento, talvez o sonho secreto desse magistral escritor de nosso tempo, seja alguma modalidade de pacificação. O final de O Arco-íris da Gravidade é uma lágrima de seu autor por nossa humanidade condenada. Um protesto, para que o que aconteceu no livro não venha de fato a acontecer com o nosso planeta. Ou estarei enganado, e o que o velho Pynchon quer é barbarizar com nossa humanidade corrompida? É possível.
Considero a linguagem de O Arco-íris da Gravidade a mais rigorosa, densa e soberba das que já li. Shakespeare não conta como seu rival porque não foi prosador. E a Bíblia por ser muito diversificada em seus registros lingüísticos. O Arco-Íris da Gravidade é insuperável em termos de beleza narrativa. Avesso à publicidade, Thomas Pynchon não concede entrevistas, se deixa fotografar, ou dá palestras. Sabe-se pouco a respeito de sua vida, por exemplo, que é judeu e sua família é aristocrática. Formou-se em física e literatura inglesa na Universidade de Cornell e prestou serviço militar pela marinha americana. Hoje, no final de 2004, 67 anos, é casado com a agente literária Melane Jackson e tem um filho. Conquistou todos os grandes prêmios literários de seu país. Há uma curiosidade nesse campo: em 1973, o Arco-Íris da Gravidade foi eleito como a melhor obra de ficção do ano pelos juízes escritores do prêmio Pulitzer. Só que o conselho curador do prêmio, constituído por jornalista e editores, resolveu não conceder o Pulitzer ao livro, por considerá-lo ilegível e obsceno. Tanto pior para o prêmio. Ponto para Thomas Pynchon. Fernando Sabino já escreveu que não existem mais “monstros sagrados” da literatura. Engana-se, ele existe e mora nos Estados Unidos. Aliás, o que é que estão esperando para conceder a Thomas Pynchon o Nobel de literatura? Bom, talvez a academia sueca é que não seja digna de tê-lo como um de seus contemplados.
Geralmente não nos apercebemos da utilidade de comentários de orelhas e quartas capas, porém, na ausência de uma resenha de jornais e revistas, são nesses pequenos textos que encontramos o toque que pode ser decisivo na aquisição de um livro. Na quarta capa da edição brasileira de O Arco-íris da Gravidade, de Thomas Pynchon, de 1998, encontramos um comentário sucinto e preciso, que nos dá uma medida abreviada do que vem a ser essa obra colossal: Lançado em 1973, O Arco-íris da Gravidade foi o primeiro grande romance impregnado dos valores e da linguagem da contracultura norte-americana. Num clima ao mesmo tempo de pesadelo e de desenho animado, uma sucessão de peripécias se desenrola num ritmo estonteante. Mas o verdadeiro protagonista do livro não é Slothrop, o anti-herói picaresco que atravessa o cenário devastado da Europa ao final da Segunda Guerra, e sim a linguagem de Thomas Pynchon. É tal sua força poética que, apesar do grotesco dos incontáveis personagens e do absurdo das situações por eles vividos, o leitor se vê totalmente envolvido e fascinado pelo universo mágico da narrativa. Vinte e cinco anos após sua publicação original, O Arco-íris da Gravidade já entrou para o Cânon dos grandes romances de nosso século.
No O Arco-íris da Gravidade, Thomas Pynchon recheia sua prosa densa e magnífica com divertidas e prosaicas canções que animam as sucessivas farras vividas pelos personagens. Vamos a uma delas:


Bem-vindo a bordo

Bem-vindo a bordo, venha com toda corda,
Que a nossa regra é botar pra quebrar –
Ninguém se lembra como a orgia começou,
Mas todos sabem como é que vai acabar!
Não faz marola, que aqui ninguém é carola,
Deixe de lado o que é aporrinhação e zanga –
No nosso barco todo mundo faz barulho,
No nosso barco todo mundo solta a franga!

Aqui tem me – nina que já é concu – bina,
Tem mãe de fami – lia com o homem da fi – lha,
Grandes ere – ções, e as predile – ções
Mais esquisitas que você já viu –
Venha também para o nosso navio,
No nosso Titanic ninguém entra em pânic´
Por conta de um mero ice Berg submerso –
Com canto e com dança, em prosa e em verso,
A festa vai ter o maior happy end –Bem-vindo a bordo, vem logo, my friend!

segunda-feira, 4 de junho de 2007

Notas sobre Philip Roth (O transgressor refinado). Rivalter Pereira.

Se me perguntassem o que penso do degenerado Alexander Portnoy, não hesitaria, respondendo que não só gosto dele, como me solidarizo com seus tormentos. Freud escreveu que o psicanalista não tem por obrigação erradicar os complexos de seus pacientes e que deve buscar uma relação pacífica com os mesmos: Portnoy sofre de transtorno obsessivo compulsivo com relação ao sexo e, durante o percurso do livro, está sendo psicanalisado. Tem que haver uma conciliação para ele, entre a neurose e a cura. Porque sofre-se com o excesso da libido, mas, sofre-se mais ainda, com o vazio da ausência de sexo. Alexander é o protagonista de O Complexo de Portnoy, do judeu americano Phillip Roth. Como pode ser tão bom, este livro? Tão prezeirosamente digerível? Tão infernalmente inteligente? Não foi por acaso que com ele seu autor tenha despontado para a fama. A obra deste ex-prefessor de inglês das Universidades de Princeton e Rutgeas, quando lançada, permaneceu vinte semanas nas listas dos mais vendidos, rendeu-lhe meio milhão de dólares em direitos autorais e vendeu 4 milhões de exemplares. O domínio narrativo no livro é total, pois não sentimos a mão do autor pesando na ação e no pensamento dos personagens. Trata-se de prosa extremamente fluídica, envolvente. E forte. Porque, apesar de retratados de forma irônica e cômica, os tormentos familiares e sexuais de Portnoy não são de brincadeira. Quem passa por algum deles, ou os dois simultaneamente, sabe do que estou falando.
Paulo Francis: Acho que Phillip Roth vai ter de esperar mais tempo até que um jovem crítico, de ascendência judaica, reconheça que Complexo de Portnoy é o maior romance cômico já escrito, melhor que Tom Jones, de Fielding, Candide, de Voltaire, Decline and fall, de Evelin Waugh, e, Waal, tão engraçado quanto Lolita, de Nabocov. Daí pode-se averiguar a medida do livro. E o incrível é que na edição brasileira ele possui apenas 221 páginas, tornando-se desta maneira num destes poucos livros magros com a categoria de obras com maior número de páginas. É como O Ateneu do carioca Raul Pompéia, ou Pedro Páramo do mexicano Juan Rulfo. Sendo os três grandes obras, em termos de conteúdo, criatividade, linguagem e construção de personagens. Que não se iluda o leitor, o humor de O Complexo de Portnoy não tem nenhuma sutileza, ele é rasgado, corrosivo. Você protestante, você católico, você judeu, defenda-se como puder das investidas deste pugilista das letras. Portnoy está combalido, está transtornado, com medo de perder a luta, mas não abandonará o ringue antes do último round.
Philip Roth: Nós deixamos uma marca. Impureza, crueldade, maus-tratos, erros, excremento, esperma - não tem jeito de não deixar. É por isso que toda purificação é uma piada.
A construção narrativa de Pastoral Americana é perfeita. A maneira como eventos do presente e do passado são apresentados aos leitores é excelente e a linguagem, ao mesmo tempo sofisticada e dinâmica, torna a leitura extremamente prazerosa. Como tenho pouco conhecimento do conjunto volumoso da obra de seu autor, Phillip Roth, não posso situá-la, mas certamente trata-se de um dos romances mais refinados, informativos e instigantes que já tive em mãos. A história da ascensão e queda (principalmente a queda) do judeu americano Seymour Levov, conhecido como o sueco, que abandona uma carreira bem sucedida como esportista para tornar-se empresário, é esmagadora de convicções. Apesar de prazeroso de ler, o livro tem lá seus hermetismos, e um deles situa-se justamente no campo das reflexões que os personagens fazem a respeito da vida. Phillip Roth, num ato de coragem, capacita cada personagem de uma voz poderosa e com argumentações convincentes para testar a inteligência e a capacidade de escolha do leitor. A exemplo do que fazia Shakespeare. Quem está certo, quem errado? Descobrir quem está com a razão neste livro é desafiador. Existe mesmo a razão? Ou a vida não passa de um sucessão absurda de eventos fortuitos? São perguntas como estas que o livro suscita. Além de ótima literatura, Pastoral Americana é, sobretudo, a marca da reflexão.
Alguns críticos consideram Pastoral Americana, de Phillip Roth, conservador, nostálgico dos anos de tranqüilidade idílica do passado. De fato, alguns personagens são assim. Mas Phillip Roth deixa claro que isso é só uma ilusão. Uma a mais das tantas que povoam o livro. Afinal, antes dos anos cinqüenta havia a guerra, antes da guerra a depressão e por aí vai. O que fica claro é que as coisas nos anos de ouro eram só um pouco menos ruins. O enredo não é passadista, ele é uma sátira aos nostálgicos. Ele arrasa e ridiculariza os iludidos com o passado. Afinal, o que são alguns anos de tranqüilidade aqui e ali frente a permanente turbulência da história? Phillip Roth é um indecente. Ainda bem. E não porque seus livros sejam recheados por cenas pornográficas, mas porque ele acaba com as esperanças daqueles que ainda sonham com a paz americana.


Pastoral Americana, pasmem, é também uma história de amor. Talvez seja a única beleza americana sustentável do livro, o fato de que mesmo com tudo ruindo a sua volta, o Sueco Levov continue amando a sua filha. Será o lado bonzinho de Phillip Roth? Não creio. Penso que ele quis apenas ser realista. Não é só amor de mãe que tem durabilidade para ser posto a toda prova. Até neste aspecto Pastoral Americana é um livro superior.
Trecho de O Professor de Desejo, de Philip Roth: Já há muito tempo a “delinqüência moral” tem estado na mente de pessoas sérias.
Em Pastoral Americana, de Philip Roth, um personagem afirma que sem transgressão não há conhecimento. Este livro é um fervilhar permanente de questionamentos que vai seduzir o leitor interessado em intelectualizar-se e evoluir com esse processo.
O senhor Emídio Russomano mora na parte italiana da cidade de Newark, nos Estados Unidos. Ele é um modesto sapateiro, rústico, que criou durante anos um canário, que atendia pelo nome de Jimmy e que morreu. Estamos em 1920, dentro do livro Casei Com Um Comunista, publicado em 1998 por Phillip Roth. Abaladíssimo com a morte do seu companheiro Jimmy, seu Emídio resolve preparar-lhe um funeral estupendo, com direito a coche e desfile pelas ruas que conduzem ao cemitério. Vejam vocês: o funeral de um canário, acompanhado pelo seu ex-dono, que chora inconsolado. É uma situação Cômica para os demais moradores da região e em especial para as crianças. Menos para uma delas, o alto e durão Ira Ringold, que conta no momento com a idade de 7 anos. Ele não só chora copiosamente, comovido com a perda de seu Emídio, como chega a trocar socos e ponta pés com outras duas crianças, porque essas caçoavam do enterro do canarinho. Nelson Rodrigues, que considerava fundamental, ao conhecer uma pessoa, saber se ela chorava, certamente gostaria de ter escrito esta história que, de resto, não sabemos se foi fictícia ou real. Curiosa década de 20, em que pessoas choravam a morte de animais.

quarta-feira, 30 de maio de 2007

Sade deve ser lido hoje? Rivalter Pereira.

As formulações antihumanistas e anti-cristãs do Marquês de Sade são assombrosas. Sua lógica é potencialmente convincente. Sustenta que a natureza existe em oposição a Deus, que Cristo era um farsante, que as relações de amizade baseiam-se apenas em razões de interesses, que não se deve confiar em ninguém, que a função suprema do indivíduo é exercer o seu poder sobre os demais e viver ao máximo o prazer sexual, principalmente o obtido através de práticas violentas, que nenhuma regra social deve ser obedecida e que o coito anal deve ser preterido ao vaginal, pois assim a humanidade não procriaria e se extinguiria. Sade não é grande literatura. Passou 21 anos de sua vida na prisão porque retelhava e torturava, até quase à morte, prostitutas. Escrevendo exorcizava a sua patológica energia sexual, transpondo delirantes orgias para o papel. Em alguns momentos chega a ser estimulante acompanhá-las. Em outros não, dada a extravagância da baderna sexual. Alguns de seus personagens pensam alto e com agudeza de raciocínio. O problema é que Sade é prolixo e pretensioso, perdendo-se em longas digressões, nem sempre geniais. Mas, tem tutano. Foi um dos primeiros a antever a decadência da sociedade contemporânea, a falência de instituições, de relações pessoais, a diagnosticar o egoísmo e a hipocrisia como sendo governadoras de nosso espírito e a defender que há um cerne animal, irracional e predatório, irremovível da natureza humana. A história não o desmente. Sade é um anormal, completo. Ainda bem. Pensadores moderados nem sempre permitem que o conhecimento avance. São desprovidos da ousadia e fantasias necessárias, temendo o confrontamento com a sociedade, com os conceitos vigentes. O Marquês francês foi uma figura extremamente liberada em pensamento e comportamento, e argumentava que este era o único caminho viável para a felicidade. Não deixa de ter a sua razão. Mas liberdade demais pode ser prejudicial, abusivo, e acabar por opor-se à liberdade do outro. O ideal, me parece, é ter o máximo de liberdade com o mínimo exigido de contenção. O lema do anarquismo é que leis existem para ser descumpridas. Sem lei nenhuma o mundo inteiro converte-se em terra de ninguém e se autodestrói. O que era o projeto de Sade. Sade não é para ser seguido, é para ser lido e compreendido. No seu Filosofia na Alcova ou Escola de Libertinagem, Dolmancé, um dos personagens centrais, pergunta: Numa palavra, sobre todas as coisas, parto sempre do mesmo princípio: a natureza fosse de encontro aos prazeres sodomitas, os gozos incestuosos, as poluções, etc, permitiria que encontrássemos nelas tanto prazer? Sade priorizou o mal, o horror, a sujeira, a decadência como temas dos seus textos. Pode ser mais benéfico do que se imagina lê-los. Claro, há os que saiam matando por aí, ao entrar em contato com seus escritos, como os “Assassinos do Pântano”, que torturaram e mataram crianças na Inglaterra. Mas, em geral vejo um efeito apaziguador no consumo de material violento. Basta lembrarmos da maneira como o dramaturgo pernambucano Nelson Rodrigues justificava o seu teatro: A ficção, para ser purificadora, precisa ser atroz. O personagem é vil, para que nós não o sejamos. Ele realiza a miséria inconfessa de cada um de nós. Para salvar a platéia, é preciso encher o palco de assassinos, de adúlteras, de insanos e em suma de uma rajada de monstros.

Rivalter pereira.